quinta-feira, 30 de março de 2006

No rescaldo do Guimarães-Sporting

Uma das questões que hoje aflige o Sporting e sobre a qual já para aqui escrevi qualquer coisa é a da unidade. Unidade, ou a falta dela, é um dos problemas mais graves que o Clube hoje enfrenta e devia estar no topo absoluto das prioridades da agenda dos candidatos. Juntemos-lhe outro, não menos significativo: o défice democrático do Sporting. Estão ligados entre si e são as causas principais da crise que se vive.

Alguém que conheço disse que os sócios são a espinha dorsal do Clube. A verdade é que os sócios, sendo a espinha dorsal, mandam teoricamente no Clube, mas não conseguem sustentar a dimensão que este atingiu e o seu controlo é tudo menos real.

Temos nos dias que correm dois Sporting's, pelo menos... De uma lado, o Sporting dos grandes desígnios --consignados nos Estatutos-- com os quais se identifica uma massa esmagadora de gente. Foram esses princípios que os levaram a aderir ao SCP. Esta gente --que não tem outros interesses no Sporting que não sejam os da identificação com os seus princípios-- está, pois, ligada ao Clube, em primeiro lugar, por essa identificação e, no caso dos sócios onde me incluo, por mais uma série de pequenos e grandes investimentos financeiros, mais ou menos periódicos e mais ou menos expressivos. Em primeira linha é isto que é o Sporting.

Do outro lado, temos uma enorme mole de pequenos, grandes e médios dirigentes, funcionários, directores, técnicos e colaboradores vários, que se foram insinuando ao longo dos anos e que foram tecendo uma imensa rede de ligações, pequenas cumplicidades, privilégios e favorecimentos, cavalgando o ideal Sportinguista. Alguns deles até assumidos simpatizantess de outros clubes. O Sporting dos sócios, dos adeptos e dos tais grandes desígnios e princípios transformou-se desta forma na "Casa de Arranjos de Alvalade, Lda." [1]

Todo este processo decorre, frequentemente, sem glória, de forma avulsa, apenas pela exploração mesquinha do momento, de forma predadora e conforme sopram os ventos. Por muito elevados que sejam os princípios do Sporting, por muito que sejam eles a mola real do Clube, por muitos milhões de adeptos e muitas dezenas de milhar de sócios que o Sporting tenha, quem o controla efectivamente é toda essa estrutura que lentamente se instalou e domina os caminhos do Clube. Controlo que é exercido por demissão dos sócios, por vezes mesmo com a sua complacência, mas também porque faltam mecanismos de participação. A tal "Casa de Arranjos", compreensivelmente, nem sequer esboça qualquer tentativa para os criar. A participação na vida do Clube, nas suas Assembleias e nos actos eleitorias é ridícula, face ao número de associados. Essa situação deveria preocupar qualquer dirigente sério, mas é o que se vê.

O Sporting é um clube de dimensão nacional. Pois, reparem que as eleições foram marcadas para 28 (uma precipitação, na minha opinião), para o Hall VIP do estádio (reparem no simbolismo da designação do local...). A dimensão nacional, tão útil noutras ocasiões, é assim reduzida a Lisboa. Francamente, não se percebe como é que, mais uma vez, não existem mesas colocadas nos núcleos, nas filiais, ou noutros locais espalhados por Portugal, para os sócios de fora de Lisboa, nem aos sócios ausentes por qualquer motivo profissional ou outro, lhes é dada a possibilidade de participar no acto eleitoral através de voto por correspondência. Nega-se-lhes assim, na prática, um direito absolutamente básico que têm na sua condição de sócios. Não creio que tudo isto seja inocente. A "Casa de Arranjos" lá se vai assim, de uma forma ou outra, perpetuando, assente no vazio democrático. A participação dos associados na vida do Clube prefigura o travesti que é a democracia no Sporting.

Não há nada mais vital, reconfortante e compensador do que sentirmos orgulho nas estruturas em que, como indivíduos, nos encontramos inseridos. Podermo-nos orgulhar da nossa família, da nossa cidade, do nosso país ou de qualquer instituição de que façamos parte, de um clube por exemplo, é um sentimento que tem um significado transcendente e não tem preço. Este orgulho espelha a possibilidade de nos revermos como um só na multitude dos diversos membros dessas estruturas e a satisfação que resulta do valor do nosso contributo nessa sensação de unidade. E compensa-nos a cada um de nós. É para isso e para mais nada que serve a participação numa instituição, particularmente uma instituição como o Sporting Clube de Portugal. Tudo o resto são meras ferramentas para atingir este objectivo.

O que se passa hoje no Sporting é que, à semelhança do que se passa noutros domínios da sociedade portuguesa, o orgulho que experimentamos em pertencer a esta nobre agremiação está profundamente ferido pelo estado de degradação a que esta chegou. Fruto dessa "Casa de Arranjos" que tem minado o Clube nos últimos anos e da sua visão estreita e mesquinha do que é o Sporting.

Para recuperar o orgulho original que a todos nos une precisamos de soluções que nos devolvam o sentimento de pertença e de sermos um só (a questão da unidade), mas que sejam baseadas num contributo e numa participação efectiva de todos (a questão da democracia). Qualquer solução para a direcção do clube que não contemple estas duas questões e não proponha formas concretas de as encontrar e alcançar deve ser rejeitada.

Mesmo que não sobrem alternativas e que tenhamos de fazer voltar a discussão à estaca zero.

Queremos recuperar o nosso orgulho ferido. Apesar da vitória de hoje, ou em complemento dela. O que está em jogo é bem maior do que aquilo que o Hall VIP vai acolher no dia 28...



[1] O processo de desarticulação e descaracterização do Sporting não é exclusivo deste Clube. Nem me parece que seja inocente. Esta actividade gera de facto um fluxo financeiro importante e a maneira como ela está estruturada, no geral, propicia toda esta subversão de valores. Claro que a apropriação canibal dos valores clubísticos a favor da especulação esbarra com o problema crucial de tudo isto: é que quem sustenta esta actividade são os sócios e os adeptos e não as televisões e os bancos. Sem adeptos a publicidade, as televisões, os bancos, etc, etc, falham o alvo... Mas isso são contas de outro rosário.