sexta-feira, 7 de julho de 2006

A relíquia

Já não me lembro qual foi o último jogo do Sporting nesse campeonato, nem interessa para o caso. O estádio estava cheio. A abarrotar. Estava calor e vivia-se no ar uma euforia contagiante. Era a “liberdade”. Estávamos em 74 e o estádio como um ovo. Uns meses antes tinha assistido ao vivo à famosa cena da ida de Marcello Caetano a Alvalade. Ouvira os aplausos sem perceber o que se passava. Naquele dia, a somar à leveza de espírito própria desses tempos que se seguiram ao 25 de Abril e ao enterro da ditadura, havia a alegria de um Sporting campeão. O que na altura não se podia supor, no entanto, era o deserto de vitórias que se lhe seguiriam. E de alguma maneira, a relação entre este facto e a queda do regime. No entanto, em Alvalade, algures na Primavera de 74, a multidão rejubilava e eu tinha 14 anos. Dos heróis da bola desse tempo lembro-me sobretudo do Vítor Damas, unanimemente admirado e amado pelas hostes. Lembro-me do Laranjeira, do Tomé, do Dinis. Mas o jogador que mais marcou esses tempos de glória era argentino e chamava-se Hector Yazalde. Segundo a minha análise da época, verde (por inerência) e imatura, o Chirola era o tipo de jogador que não me entusiasmava. Parecia que nem sabia jogar à bola. Mal se mexia, não marcava nem se desmarcava, não tinha grandes jogadas individuais, não sujava os calções. Enfim, a única coisa que o gajo fazia bem era marcar golos. E marcava muitos. Certo domingo assisti, com estes que a terra há-de comer, a um jogo que me ficou para sempre na memória. Oito a zero ao Montijo, se a dita não me falha. Era mesmo bater em defuntos (salvo seja, que hoje nem sei em que Divisão é que eles jogam) e o Chirola marcou seis. Seis golos seis. Na altura não se dava o devido valor ao golo. Hoje sei que por muitas fintas que se façam, por muitos rodopios e toques na bola que se consigam, nada pode ultrapassar a habilidade daqueles que possuem a intuição inata do golo. Quase sem ninguém dar por eles. E, inegavelmente, Yazalde era um desses. Naquele ano mágico de 1974, o Chirola marcou 46. Golos. Foi Bota de Ouro e recordista. Nasceu num dos bairros de lata dos subúrbios de Buenos Aires e veio marcar golos para Lisboa. Soube há uns anos que esse mesmo Chirola passou a titular da verdadeira equipa alviceleste. E tive saudades. Desses tempos e desses golos. Dos amigos com quem invadi pacificamente o relvado do velho Alvalade e com quem partilhei o resto de um dos bocadinhos que sobraram da camisola que ele vestiu no jogo dessa tarde e que guardei como troféu. Ao longo de muitos anos, fui estabelecendo com aquele pedaço de tecido sujo, verde e branco, uma relação de um afecto quase religioso. Da relíquia propriamente dita, e para minha nostalgia profunda, já foi perdido o rasto. Mas bem lá no fundo, ainda vou guardando essa memória. De um pedacinho de tecido rasgado, meio verde, meio branco, que pertenceu em tempos ao Hector Yazalde, que também conhecíamos como Chirola e que marcava golos que até enjoava. Como diria o poeta, raios partam a vida e quem lá ande...