quinta-feira, 6 de julho de 2006

CARTA A UMA FILHA “BANDEIRANTE”

Querida filha,
Quase fiquei orgulhoso com o teu romantismo… Lembrei-me dos tempos de menino em que no único campo relvado que então existia, antes da construção do Estádio Nacional, deixava cair lagrimitas ao escutar o hino nacional antes dos jogos internacionais.
Hoje não trago bandeiras no carro, nem as ponho à janela.
Os “chicos espertos” que depois do 25 de Abril se aproveitaram da nossa paixão pelo futebol para subirem a poleiros recheados de tachos, enriquecerem fraudulentamente ou esconderem a sua incapacidade para governar o País, mataram-me essa manifestação pueril do muito amor que tinha e tenho por este Portugal eternamente adiado.
Havia, já nessa altura, a ideia de que o futebol ajudava a perpetuar a ditadura do Estado Novo. Agora sei como era singelo, cândido e quase inofensivo esse aproveitamento.
Chega a ser obsceno o que se passa com a comunicação social, nomeadamente com os canais da televisão, que levam minutos infindáveis no início dos seus noticiários e fazem reportagens a relatar pormenores idiotas da “gloriosa missão na Alemanha”.
No entanto, passou quase despercebido que Maria João Pires tenha tido um enfarte, tenha sido operada e tenha sido distinguida com o Prémio Internacional Juan de Borbón, em Espanha…
Por todo o lado encontro esse afã de nos mergulharem num mar de enganos que nos torne ainda mais parvos e dóceis consumidores das patranhas que os senhores de Portugal nos queiram impingir.
Desde um livrinho à venda nos supermercados com o sugestivo título “Amo-te Portugal – a voz, o sentimento e as esperanças dos nossos heróis rumo ao Mundial 2006” à importância que os nossos deputados deram, oficialmente e sem pudor, ao “jogo da bola”, mudando o horário do seu pseudo trabalho para poderem ver o Portugal-México…
Escrevo-te depois do espectáculo triste que foi o Portugal-Holanda.
Os jogos deste Mundial continuam a mostrar, a quem não é cego e pode estabelecer comparações, que se joga hoje muito pior do que se jogava há 50 anos e que a única justificação para os escandalosos proventos pagos aos jogadores é a negociata que os ordenados e transferências permitem. E o mesmo se pode dizer do que se paga a treinadores/seleccionadores, que pouca ou nenhuma influência têm no que se passa em campo.
Tenho imensa pena de não poder mostrar-te como jogavam as equipas da minha meninice e juventude.
O “meu” Sporting, o Torino de Itália, o Honved da Hungria, o São Lorenzo de Almagro da Argentina, a equipa de Inglaterra, que deu 10 a 0 a Portugal !
Podes crer que não é só saudosismo. É mais revolta, pelo sentimento de impotência para mudar esta podridão em que caímos e receio de que os meu netos venham a julgar herois rapazes que dão pontapés numa bola em troco de fortunas e a pensar que o Deus, que terá construído a máquina maravilhosa que é o corpo humano e milhares de milhões de estrelas, possa interceder a favor desta ou daquela equipa de futebol.

PS – Este post scriptum é do Domingo depois do jogo com a Inglaterra. Reaccionário como de costume…
Continua-se a jogar mal. Scolari pode ser bom para motivar os jogadores e criar bom ambiente no balneário, mas ainda não me convenceu como treinador. Aliás o mesmo me sucede com Mourinho.
Nos rodapés das televisões e nas opiniões ouvidas repete-se que é preciso renovar o contrato com o Sr. Filipe Scolari. Quem mandará as mensagens e porquê? Que influência teve o treinador no resultado deste jogo? Ao longo das duas horas de passes e passinhos a mastigar o jogo, quantos remates fizemos à baliza inglesa? Nem na marcação das grandes penalidades fomos eficazes. Valeu a estrelinha de Ricardo, praticamente o único responsável pela passagem às meias-finais. Ou talvez nem ele. Porque ao ver a página 8 do Público e ao ouvir no telejornal a convicção religiosa do Sr. Gilberto Madaíl quase sou levado a acreditar que foi na realidade Nossa Senhora de Fátima quem salvou Portugal.
Seria uma obra de misericórdia a RTP transmitir a gravação do Portugal-Coreia do Mundial de 1966. Talvez assim vocês se convencessem de que tenho razão no meu azedume…